segunda-feira, 1 de março de 2010

Oliveira Valença

(Crónica publicada no P2 do Público, no dia 26 de Janeiro de 20010. Amanhã, como todas as terças-feiras, há mais)




O meu amigo José Campos, comerciante reformado do portuense Bairro da Sé, trouxe-me há dias duas folhas A4 que resumem a incrível história de um homem: Artur de Oliveira Valença. O nome parece feito à medida da personagem de um romance e a vida contada naquelas duas páginas é tão grande que nem se percebe como pode ter cabido em tão pouco espaço. Se ainda fosse a tempo de ser alguma coisa, creio que gostava de ter sido Oliveira Valença. Ele foi quase tudo. E depois esqueceram-no (ou deram o nome dele a uma rua pela qual ninguém passa, o que é forma mais eficaz de apagar a memória de alguém).

Oliveira Valença foi jornalista, escritor, editor, costureiro e empresário. Mas foi, sobretudo, o homem que inventou coisas tão extraordinárias como as camisolas axadrezadas do Boavista, a Volta a Portugal em Bicicleta e a forma de driblar a PIDE. José Campos apresentou-mo como o grande responsável pela logística da oposição democrática no Porto, uma espécie de operacional optimista que não conhecia a palavra “impossível”. A PIDE rasgava os cartazes dos candidatos da oposição? Oliveira Valença mandava imprimi-los na mesma, colava-os em pedaços de cartão, pregava-os em tábuas e contratava o grupo de cegadas do Gamelas da Sé para desfilar com os cartazes pelo centro da cidade (até que a PIDE vinha e prendia toda a gente). O Governo Civil não autorizava manifestações? Oliveira Valença pedia autorização e alugava o Coliseu, espalhava cartazes anunciando o evento e, quando a PIDE aparecia, ele mostrava o pedido de autorização. As autoridades não apreciavam que se comemorasse a instauração da república? Oliveira Valença juntava os amigos e ia festejar, sabendo de antemão que a polícia havia de vir dispersar o ajuntamento, previsivelmente recorrendo à proverbial bastonada.

Enquanto editor, Oliveira Valença cometeu também várias imprudências, como publicar a Declaração Universal dos Direitos do Homem, em 1951, ou o manifesto Missão e Fins do Socialismo Democrático, ambos em folhas dobradas e presas com agrafes. O José Campos ofereceu-me um exemplar do manifesto, com as folhas amarelecidas e riscadas com sublinhados: “Os socialistas consideram-se solidários com todos os povos submetidos a ditaduras – quer sejam fascistas ou comunistas – e ligam-se ao seu esforço para reconquistar a liberdade”.

Obviamente, prenderam-no. Se fosse vivo, talvez ainda antipatizassem com ele por causa de uma frase que não está sublinhada (“O socialismo pretende abolir o regime capitalista substituindo-o por uma sociedade económica na qual o interesse colectivo substitua o interesse pelo lucro”...), mas que me saltou à vista. Ao contrário de quase todos, Oliveira Valença nunca desistiu de lutar pela possibilidade de ser livre e justo, mesmo quando perdeu negócios. Os que têm a minha idade, ou são mais novos, já só podem imaginar o que seja isto. Mas não apreciamos, em todo o caso, a ideia de estar presos. Isto devia ser suficiente para que lembrássemos Oliveira Valença.