segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Enlaçados

(Crónica publicada no P2 do Público, no dia 5 de Janeiro de 20010. Amanhã, como todas as terças-feiras, há mais)




Serei um pouco mórbido, mas gosto de histórias de amor que terminam tão tragicamente que acabam sendo absolutamente perfeitas – como a de Romeu e Julieta, claro, e como a de Ilza e Renato, que imagino ter sido ainda mais doce e sem as dramáticas confusões em que a literatura costuma enredar as suas personagens. Ilza e Renato morreram apenas, sem intriga romanesca, com os corpos soterrados e enlaçados, como parece que também aconteceu sob a torrente de lava do Vesúvio, há quinze séculos.

Segundo vem relatado nos jornais, Ilza e Renato escolheram começar o ano de 2010 numa casa em Angra dos Reis, no Brasil. Não conheço o sítio, mas suponho que há-de ser paradisíaco: um local bom para viver e, bem vistas as coisas, ainda melhor para morrer, como sucedeu a este casal de brasileiros, duas das vítimas das chuvas torrenciais que caíram no estado do Rio de Janeiro. Foram soterrados por uma derrocada de lama e de pedras e, quando as equipas de socorro alcançaram os corpos, acharam-nos enlaçados num abraço afinal eterno, profundo e infinito como deveriam ser todos os abraços sinceros, apaixonados e doces.

Não conheço os pormenores, nem quero, e prefiro pensar que Ilza e Renato morreram felizes e enamorados sob a torrente de pedras e lama; que tinham acabado de fazer amor enquanto, na rádio, Lhasa de Sela, a cantora mexicana que também este fim-de-semana morreu, cantava aqueles três versos premonitórios: “Llegarás mañana/Para el fin del mundo/O el año nuevo”. Quase consigo vê-los, Renato estreitando Ilza junto ao peito e beijando-lhe o cabelo ainda húmido do banho, ela fechando docemente os olhos e pensando que tudo teria valido a pena e que morreria feliz se pudesse acontecer naquele instante, ali, com ele. Depois beijaram-se uma última vez e adormeceram enlaçados e leves, desejando que o tempo parasse, mas sem imaginar que o tempo pararia realmente, sem lhes dar tempo, sequer, para recordar Vinicius de Moraes e a inútil pergunta em verso, “Quem pagará o enterro e as flores se eu me morrer de amores?”.

Gostava, por isso, que Lhasa de Sela tivesse morrido como Ilza e Renato, e não traída pela estúpida doença que, cedo demais, apagou a melodia mágica que se escuta em La Llorona e em The Living Road, os discos que conheci graças à amizade da escritora angolana Ana Paula Tavares. Posso, ainda assim, inventar um final diferente para Lhasa e imaginá-la junto à grande fogueira de ano novo que se acende na Carreira de Cima de Castelo de Vide; que Lhasa aí está com o seu homem no início da madrugada, sentados no banco de madeira que alguém colocou junto às brasas, aquecendo-se e olhando a lua cheia sobre a Serra de S. Mamede. Lhasa canta Pa llegar a tu lado uma última vez, com os olhos fechados. “Gracias a tu cuerpo doy/Por haberme esperado/Tuve que perderme pa’/llegar hasta tu lado//Gracias a tus brazos doy/Por haberme alcanzado/Tuve que alejarme pa’/llegar hasta tu lado”. Só então Lhasa morreria. Enlaçada e feliz.