terça-feira, 5 de janeiro de 2010

O sucateiro amável

(Crónica publicada no P2 do Público, no dia 23 de Novembro de 2009. Hoje, como todas as terças-feiras, há mais, em torno, entre outras coisas, da triste notícia da morte de Lhasa de Sela e de uma história de amor perfeita)



Tem alguma graça constatar como certas profissões, habitualmente esquecidas e subterrâneas, adquirem uma notoriedade súbita e, por vezes, bem pouco agradável. Uma maçã podre, já se sabe, não deve manchar o pomar inteiro e, estou certo, há por aí muito sucateiro amável cuja honesta e útil actividade estará, por estes dias, à mercê de um escrutínio pouco cordial. Esta crónica é, pois, um gesto de desagravo aos sucateiros pulcros – que os há, decerto.

Na rua em que eu cresci existe, por exemplo, uma espécie de sucateiro-serralheiro que, para além de fazer portas em alumínio e portões de ferro (de grande préstimo, aliás), acumula práticos conhecimentos na área do contacto com o paranormal e, creio, com almas já transitadas para o além. Para os carenciados sem meios para recorrer à Psicologia, mas, ainda assim, necessitados de amparo espiritual, este homem tem sido um verdadeiro guia, incansável e próximo como um irmão mais velho.

Entre todos os profissionais dedicados aos resíduos ferrosos, aquele que mais aprecio é, ainda assim, Hank, o personagem do filme One From the Heart, de Coppola (1982), a que Frederic Forrest dá corpo. Hank é um sucateiro de Las Vegas e acumula, por isso, toda a espécie de lixo proveniente da hiperbólica decoração de néon dos famosos casinos, criando um cenário onírico no espaço caótico da sucata.

Acresce que Hank vive com Frannie (Terry Garr). Esta, cansada, como na canção de Tom Waits, de apanhar a porcaria que ele deixa pelo caminho, e saturada da triste vidinha atrás do balcão de uma agência de viagens, deixa-se encantar pelo aventureiro Ray (Raul Julia). E Hank – que, apesar dos créditos profissionais, não é de ferro – conhece Leila, a artista de circo à qual a então jovem e bela Nastassja Kinski dá corpo. Gosto deste filme que eu sei lá e, talvez por isso, lembro-me sempre da cena em que Hank leva a ágil Leila para a sucata. Aí, utilizando os detritos lá depositados sem recurso a concurso público, a artista executa algumas acrobacias graciosas, enquanto Hank, enlevado, invoca a subtil magia do cinema para acompanhar os gestos de Leila com uma orquestração de buzinas interpretada por um monte de carcaças de automóveis.

A imagem não me sai da cabeça: há como que uma parede de grelhas, carroçarias e faróis, os quais acendem e apagam a compasso, e, de costas, Hank empunha uma batuta e rege essa mágica orquestra enquanto Leila caminha no arame segurando uma sombrinha. Lembro-me desta cena muitas vezes, mas, nas últimas semanas, tenho-a recordado ainda mais. Temo (insensatamente, eu sei) o momento em que o plano muda e se vê o rosto do improvável maestro. Assusta-me descobrir que o homem que comanda a banda da sucata não é já o amável Hank, mas outro energúmeno qualquer. Mas depois ocorre-me que, no filme, fica tudo bem no final: Hank e Frannie reconciliam-se e Crystal Gayle canta aquela canção que sempre me faz chorar: “Leva-me para casa, meu tontinho, que o mundo sem ti não é redondo”.