sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Crioulizado: uma explicação

Iniciei ontem uma colaboração quinzenal com o jornal A Nação, de Cabo Verde. A crónica da coluna "Crioulizado" será também publicada aqui no Teatro Anatómico



A primeira frase que aprendi a dizer na língua das ilhas foi “-n cre cumê”. Era um dia de Julho de 2005 e eu tinha acabado de chegar à vila do Tarrafal de Santiago. A barriga reclamava alimento depois da travessia da ilha, com paragem em S. Domingos, na Assomada e na antiga prisão, e a conversa entre o guia e o empregado do restaurante cativou-me a atenção ao ponto de ter sido capaz de reconhecer as palavras que me permitiram formar uma frase completa. “-N cre cumê”, respondi quando me perguntaram o que pretendia almoçar. E depois veio a catchupa, a sopa loron e as outras palavras todas que fui aprendendo.

-M cre cumê talvez seja a mais essencial das frases, quanto mais não seja pela faculdade de atravessar a fronteira entre a fome e a saciedade. Mas, vendo bem, um esfomeado pode sempre fazer rodar a mão diante do estômago para dizer sem palavras essa urgência de alimento. A mais útil de todas as frases que aprendi é, na verdade, aquela que quebra o gelo sempre que encontro um cabo-verdiano na minha cidade: Manera! Tud dret? Aprendi-a na ilha do Sal, no interior do antigo vulcão, e utilizo-a amiúde, sempre que posso, cimentando o processo de criolização em que me tenho empenhado.

Contactei com o conceito traduzido pela expressão “crioulizado” graças à jornalista Matilde Dias, num e-mail que ela me escreveu pouco depois de ter começado a amar as ilhas e a descobri-las. Nunca mais esqueci a palavra. Uso-a agora para dar nome a esta coluna, à qual acedo como mais um passo neste processo pessoal de conquista. Se correr bem, espero um dia poder namorar à janela de Cabo Verde, obter, mais tarde, autorização para entrar em casa e pegar-lhe na mão. Talvez cheguemos a juntar os trapinhos.

Às vezes, quando encontro pelo Porto gente das ilhas, pisco-lhes o olho com esse “manera, tud dret?” e, depois, notando a desorientação deles, pergunto-lhes “bo e de Cabo Verde, não?”. Ainda confusos, confirmam e, às vezes, perguntam-me “bo també?”. Tenho vontade de responder que sim. Mas sei que é mentira. Sou, para já, apenas crioulizado.