terça-feira, 20 de outubro de 2009

Viagens adiadas




Na autobiografia Vivê-la para contá-la, o escritor colombiano Gabriel García Márquez revela que encontrou numa viagem de comboio o nome para a ficcional aldeia de “vinte casas de barro e cana” onde decorre a acção de Cem Anos de Solidão. Macondo era o nome de uma quinta bananeira pela qual, às onze horas, passavam as carruagens a caminho de Aracataca, para onde o pequeno Gabito costumava viajar com o avô.

Macondo é, como Shangri-La, Xanadu e Nárnia, uma das mil e duzentas localidades imaginárias que o escritor argentino Alberto Manguel recenseou para escrever o Dictionary of Imaginary Places, um livro que apresenta descrições e mapas de sítios que, desde Homero, foram visitados pela ficção sem terem existido no mundo real. Como Macondo, também ali deve figurar Comala, aldeia sem ruídos e sem gente, com as ruas calcetadas com pedras redondas, as casas vazias, “as portas fora dos gonzos, invadidas pela erva capitã”. Trata-se da cidade onde deveria ser possível encontrar Pedro Páramo, o móbil do extraordinário romance homónimo do mexicano Juan Rulfo.

Sendo tão imaginária como Macondo, Comala, segundo parece, foi baptizada a partir do nome de um povoado da zona de Colima, no México. Porém, e segundo li já não sei onde, nada na aparência arborizada e plana da região de Colima convida a imaginar a terra em brasas, qual boca do inferno, que é a Comala da ficção. Prefiro pensar, aliás, que o nome do lugar inventado de Juan Rulfo foi decalcado da Comala que existe na região de Nampula, no Norte de Moçambique.

Nunca estive em Comala, mas, às vezes, visito-a a partir das altitudes do Google Maps: sigo com o cursor a estrada 106 que sobe de Alua para Metoro e que, depois, torce em direcção ao mar, até Pemba. Comala fica à esquerda. Vista do ar, assemelha-se a uma pintura abstracta em tons verdes, com manchas acastanhadas, mas a povoação, parece, fica numa nódoa escura da geografia, imprecisa e vaga. Gosto de supor que se trata de uma região quente e com uma vegetação escassa e rasteira, a qual, num ano de seca, facilmente se transformaria num cenário plausível para a visita do filho de Pedro Páramo.

Mas a Comala de Rulfo, eu sei, não existe. Deve, por isso, constar no livro de Manguel. E também lá deviam figurar outras cidades imaginárias, como Paris, Barcelona, Praga, Salvador e Luanda. Quando fui a Paris, por exemplo, não encontrei sinal nenhum da Paris de Céline. Barcelona é só uma sombra pálida da Barcelona de Montalbán, Vila-Matas ou Zafón. Praga é um bilhete-postal aonde não há lugar para as metamorfoses de Kafka. Mindelo é mais sab nas mornas de Ildo Lobo. Luanda é hostil como não vem em nenhum dos livros do Ondjaki. E Salvador não tem quase nada da magia dos romances de Jorge Amado. Temo, por isso, que o Rio de Janeiro não guarde nenhuma semelhança com os romances do Rubem Fonseca ou com os versos do Tom Jobim, e que Buenos Aires não se pareça com a letra de um tango. Por isso adio as viagens.

Crónica publicada no P2 do Público, no dia 30 de Junho de 2009. Hoje, como todas as terças-feiras, há mais. Ficam avisados.